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Jovem Cientista | Do medo à admiração por cobras, aluna do Butantan estuda como melhorar a produção do soro contra a coral-verdadeira

Beatriz Kopel investiga as semelhanças entre o veneno da coral e da naja, para ajudar a enriquecer o soro antielapídico


Publicado em: 29/06/2022

Com tanto medo de serpentes, Beatriz Kopel, de 20 anos, nunca imaginou chegar perto desses animais – muito menos dividir o ambiente de trabalho com eles. Mas a aluna de Iniciação Científica do Laboratório de Herpetologia do Instituto Butantan mostrou que a sua paixão pela ciência vai além. Hoje, o pavor se transformou em admiração. Orientada pela pesquisadora Anita Tanaka-Azevedo, Beatriz é estudante de graduação em Química da Universidade de São Paulo (USP) e pesquisa maneiras de aprimorar a produção do soro antielapídico, que trata o envenenamento por acidente com cobra coral-verdadeira (gênero Micrurus), a partir de componentes do veneno da naja (Naja kaouthia).

O soro contra o veneno da coral é obtido a partir do plasma de equinos hiperimunizados com uma mistura de venenos das serpentes Micrurus frontalis e Micrurus corallinus, tendo eficácia limitada contra certas espécies, como a Micrurus altirostris. O principal objetivo do estudo é tentar aumentar o volume de soro produzido e conseguir otimizá-lo, sem precisar utilizar mais corais. Isso porque a média de volume de veneno extraído de uma coral é muito baixa: 5,5 microlitros. Mesmo com o uso de pilocarpina (substância que induz a liberação do veneno), esse número só chega até 12,5 microlitros. De uma jararaca, por exemplo, é possível extrair 1.000 a 1.500 microlitros (1 a 1,5 mL).

Além disso, manter as cobras corais em cativeiro não é simples. Elas possuem hábitos fossoriais, ou seja, vivem abaixo do solo, e precisam ser alimentadas com muito mais frequência do que outras serpentes (de duas a quatro vezes por mês, contra uma vez por mês). O alimento dessas cobras também é bem específico, pois elas são ofiófagas: só se alimentam de outras cobras não peçonhentas, cecílias e lagartos sem patas.

E onde a naja entra nessa história? A Naja kaouthia é uma serpente peçonhenta asiática da família Elapidae, a mesma família da cobra coral. A partir de suas semelhanças evolutivas, a expectativa do projeto era encontrar compostos comuns entre os venenos das duas serpentes, com o intuito de aproveitar o veneno da naja para complementar o soro antielapídico. “Nós descobrimos que as duas espécies possuem os mesmos constituintes principais, ou seja, algumas proteínas das mesmas famílias. O próximo passo é isolar e caracterizar esses componentes para verificar exatamente quais são as proteínas em comum”, diz Beatriz.

A grande vantagem de usar o veneno da naja para fazer o soro está no volume: a extração feita de uma única serpente dessa espécie rende cerca de 1.000 microlitros (1 mL) de peçonha.

Segundo Beatriz, apesar dos acidentes com coral representarem em torno de 1% dos acidentes com serpentes no Brasil, seu veneno provoca sintomas muito graves. Ele é altamente tóxico e afeta diretamente o sistema nervoso, causando dormência no local da picada, visão turva, paralisia e dificuldade na fala, além de problemas cardiorrespiratórios. O soro antielapídico fabricado no Butantan é o único tratamento para o envenenamento.


Aprendizados técnicos e humanos

A estudante ingressou na Iniciação Científica do Butantan há um ano e meio, quando cursava o terceiro semestre da graduação. Para ela, foi um caminho um tanto inesperado, mas muito enriquecedor. “Quando surgiu a oportunidade, eu pensei ‘quando eu vou ter outra chance de trabalhar no Butantan?’. Eu não sabia nada sobre serpentes quando comecei. Na verdade, eu tinha muito medo de cobras, e só fui perder esse medo quando tive que fazer a extração de veneno de um filhote de jararaca”, conta.

No Butantan, Beatriz foi se interessando cada vez mais pelas serpentes e, como estudante de química, se fascinava especialmente em analisar a composição do veneno dos animais. Para ela, além da equipe ser solícita e receptiva, a diversidade de conhecimentos no laboratório agregou à sua experiência. “Quando eu entrei no Butantan, a maioria das pessoas da equipe era bióloga. Foi muito interessante conhecer pontos de vista diferentes sobre os conceitos de química e bioquímica. Acho que eu aprendi melhor a ser química com os biólogos.”

Trabalhar no Laboratório de Herpetologia foi a primeira experiência da estudante em direção ao sonho de se tornar pesquisadora. Não só os pontos positivos, mas também as dificuldades, foram importantes para o seu aprendizado. Sua expectativa era que a quantidade de acertos seria muito maior, mas ela acabou descobrindo que os experimentos costumam dar muito mais errado do que certo. E que isso tudo é parte do processo de ser cientista.

“Eu aprendi muito não só sobre as técnicas, mas sobre como se faz ciência. Sobre como se discute ciência, como se analisa dados e sobre a importância de um ambiente de pesquisa saudável em que você tem uma colaboração boa entre os colegas. Eu aprendi como é um ambiente de laboratório que prospera e como eu posso fazer a minha parte nisso.”


Um trabalho (e uma vida) com propósito

Beatriz conta que sempre foi uma criança muito curiosa e vivia perguntando para seus pais por que “as coisas no mundo são como são”. Um de seus maiores interesses era entender como a saúde humana funcionava. Sua mãe tem anemia falciforme, uma doença genética hereditária que causa alteração no formato dos glóbulos vermelhos (células do sangue). “Quando eu era pequena, queria achar uma cura para essa doença. Hoje eu entendo que é uma doença genética. Mas acredito que foi tentando entender essas coisas, entender o que estava acontecendo dentro da minha família, que eu fui desenvolvendo essa curiosidade e interesse por ciência”, diz.

Para a estudante, o papel da ciência vai além de descobrir como o mundo funciona: cada cientista faz uma fração de trabalho para que as pessoas possam, direta ou indiretamente, ter uma vida melhor. E isso é o que a motiva a se dedicar ao atual projeto e a seguir uma carreira como pesquisadora, explorando também outras áreas.

“Se os meus estudos fizerem alguma diferença na vida das pessoas, eu vou saber que fiz o meu trabalho certo.”